fbpx

A pré-história

Rodriguinho sai de casa. Anda até o outro lado da rua e solta um rugido quase alto:

– Marcôôôôs!

Sem resposta, ele bate palmas e tenta chamar a atenção das pessoas de dentro da casa. Ninguém se manifesta. Rodriguinho consegue sentir alguns sons lá de dentro, mas são longínquos. Resolve voltar para casa.

Depois de comer um pão-com-manteiga (palavras que deveriam ser unificadas por hífen, pois nasceram uma para a outra), ele pega o telefone e girando a rodinha, disca para a casa do amigo. Depois de alguns segundos de silêncio, começa a tocar.

– Alô?

– Oi! O Marcos está?

– Rodriguinho? Já vou chamar, um minutinho – diz a voz de uma senhora, talvez uma mãe.

Sim. Ele pegou um telefone fixo e ligou para a casa do amigo. Tática muito utilizada pelos nossos ancestrais, desprovidos forçadamente de celulares.

– Rodriguinho?

– Ae Marcos! Vamos jogar uma bola ai?

Bora! Sai aê!

Saíram os dois para a rua, Rodriguinho com sua a bola surrada de plástico. Marcos era goleiro, ficava em frente ao portão de sua casa, que tinha dimensões idênticas ao do gol do maracanã, na cabeça deles. Rodriguinho ficava chutando de longe, fazendo o goleiro se jogar, ralar e se sujar todo nas pontes, para inconformidade da mãe, olhando pela janela.

Na hora da pausa para o descanso, começaram a conversar sobre futebol. Divergiram ligeiramente quanto ao goleiro da seleção de 1982 e apostaram um tubaína em quem estivesse certo. Entraram correndo na casa do Rodriguinho e abriram o armário. Pegaram a enciclopédia e começaram a folhear. Obtiveram a resposta correta e a vitória foi para o Marcos, que se gabou momentaneamente pelo seu conhecimento sobre goleiros.

De volta na rua, encontram o resto da galera, brincando de esconde-esconde. Foram brincar juntos, sempre montando um esquema para enganar o procurador. Trocavam de camisas e ficavam de longe, para enganar o coitado do amigo. Quase nunca dava certo, mas se divertiam.

Mais a noite, com todos de banho tomado e devidamente orientados pelas mães a não se sujar, a brincadeira muda de tom.  Na calçada da casa do Rodriguinho, entre meninas e meninos, começavam a brincar de Stop  ou Pera, uva, maçã ou salada mista. A Primeira sempre rendia mais risadas, com papéis rasgados do caderno da amiga Viviane e canetas que eram achadas pela casa. A segunda brincadeira era mais para unir os garotos e garotas. Ledo engano, pois as meninas nunca beijavam os meninos, era só pela emoção de tentar.

Tarde da noite, mais precisamente às nove horas, Rodriguinho tem que comer para dormir. Vê o pai chegando do trabalho com um aparelho novo chamado celular. É preto, grande e pesa quase uma tonelada. O pai do Rodriguinho não deixa ninguém mexer, porque a tecnologia poderia afetar a cabeça do filho e da esposa. Era muito complexo.

Depois da novela, Rodriguinho vai para a cama, antes anotando o telefone da Viviane em sua agenda toda surrada, para poder ligar para ela, nunca. Dorme como um anjo até o horário de ir para a escola, cedinho, para levar o trabalho em três folhas de almaço que havia feito com muito custo. Se rasgasse as folhas, teria que escrever tudo novamente. Por isso levava com muito cuidado.

A escola era pertinho e Rodriguinho ia sozinho. Chegando lá, conversou com os amigos,  entregou o trabalho,  fez uma prova surpresa cheirando álcool de mimeógrafo e voltou para casa. Antes de entrar pelo portão, deu um grito:

– Marcôôôs!

Foram jogar futebol em um campinho na rua de baixo. Era um contra (antiga palavra que era usada no lugar de “duelo”e o adversário era o time  da rua de trás. Ganharam, depois de muita briga e algumas pancadinhas. Histórias para a vida inteira. Coisas que Rodriguinho lembraria até a velhice.

Novamente de noite, o pai chega com um jornal de baixo do braço. Deixa o celular em cima da mesa junto com o referido jornal e vai ao banho.

Rodriguinho vai escondidinho, pega o jornal e lê alguma coisa sobre “computadores e o futuro” e outras sobre “fazer tudo sem sair de casa”.

Naquele instante, ele percebeu que o mundo estava mudando e a vida que ele tinha, tão alegre, natural e saudável, nenhuma outra criança iria ter no futuro próximo.

Mas aí ele lembrou que era muito novo para pensar coisas tão complexas. Pegou a bola e foi fazer embaixadinhas na garagem, pensando em como iria arrumar dinheiro para comprar fichas e ligar do orelhão, escondido, pra Viviane.

Avatar de Bruno Rosik